"Estou em um Uber em Nova York. Meu motorista, um cara de uns 30 anos, não me deu bom dia. Ele não perguntou se eu quero uma água ou uma bala. O rádio está ligado em uma estação que toca hits Americanos e o volume alto o suficiente para ser impossível ignorar a música. Nem sinal de ele me perguntar se quero outra música, ou o silêncio. Quando estamos nos aproximando do destino, meu motorista não sabe muito bem se usa o endereço que coloquei no aplicativo ou o “alfinete” no mapa para se localizar. Ele pergunta onde quero ser deixado. Respondo: no endereço que coloquei no aplicativo. Ele não sabe muito bem o que fazer com isso.

Algumas horas mais tarde: peço um yellow cab na rua, com a tradicional levantada de mão (o Uber mostrava um tempo de espera alto demais e havia vários taxis passando na minha frente). Entro no taxi. Recebo um bom dia do taxista, que me pergunta qual é meu destino. Durante a viagem, ele me pergunta simpaticamente de onde venho. Eu pergunto de onde ele vem. Depois ficamos em silêncio. Ele me deixa precisamente na frente do endereço pedido, que claramente já lhe era de alguma forma familiar (como aconteceu em 99% das corridas de taxi que já fiz em NYC)."

A experiência acima, relatada a mim por um amigo, me fez pensar bastante sobre o Uber, a motivação (drive) do ser humano e sua relação com o trabalho e as práticas de gestão de performance que vemos nas empresas que visitamos. Incrivelmente, e de maneira contraintuitiva[1] (sempre fui um grande crítico dos taxistas e sua muitas vezes soberba), tive uma experiência bem ruim com motoristas de Uber em uma viagem de alguns dias em Nova York. Confesso que a experiência foi bem pior do que a que tive em outras cidades dos EUA (São Francisco e Miami). E resolvi pensar um pouco no assunto.

O sistema de gestão de performance de motoristas do Uber

Pra quem ainda não refletiu sobre o assunto: O Uber tem um sistema de gestão de performance provavelmente muito parecido com o da sua empresa (se você trabalha em uma grande empresa). E provavelmente tão falho quanto.

Quando terminamos uma corrida de Uber, o aplicativo pede para darmos uma “nota” à corrida em estrelas. Uma estrela é péssimo, cinco estrelas é ótimo. Nas notas abaixo de cinco, o sistema nos pergunta “o que poderia melhorar?” e oferece algumas opções pré-definidas (no meu caso, extraído em 2017, “serviço”, “navegação”, “direção”, “conforto”, “limpeza” e “outros”) e na nota cinco muda um pouco a pergunta para “mande um elogio” e outras opções pré-definidas (“excelente serviço”, “ótima conversa”, “expert em navegação”, “simpático”, “carro bacana” e “música incrível”).

Portanto, se eu não gostei muito da forma com que meu motorista me deixou no meu destino (ver exemplo no começo do artigo), vou colocar, talvez, três estrelas e clicar no botão “navegação”. Meu motorista, por outro lado, vai receber uma notificação de que eu avaliei ele em três estrelas, e uma indicação de que minha motivação para a nota “baixa” foi a “navegação”.

A qualidade da avaliação

O mecanismo de gestão de performance do Uber tem muito de avaliação de performance, e pouco de gestão de performance. O grande “cliente” do sistema do Uber é o próprio Uber, que usa os dados das escalas de estrela para suspender/expulsar certos motoristas que não possuem um nível de “qualidade” aceitável. O app é todo otimizado para a avaliação, mas muito pouco orientado para o desenvolvimento do motorista: como ele pode, na prática, melhorar seu serviço/navegação/carro?

Essa prática do Uber é muito parecida com as práticas dos RHs das maiores empresas do mundo, que promovem processos anuais de avaliação de desempenho todos focados em notas ou conceitos, e muito pouco orientados para o desenvolvimento das pessoas. Receber um “três estrelas” e um tag “navegação” me parece muito parecido com receber um “abaixo das expectativas” em “cumpre com o combinado” ou outra competência do tipo: tenho que fazer um exercício de criatividade para disso gerar algum insumo de como melhorar.

Um sistema de gestão de performance poderia começar com um campo aberto, com um enunciado do tipo “como posso melhorar meu trabalho?”, e possivelmente botões que permitam ao cliente “taggear” o texto com os temas abordados (poderiam ser os mesmos dos atuais). Assim, o motorista receberia uma sugestão clara e prática de como pode melhorar no quesito "avaliado", e não apenas um aviso genérico de que não cumpriu as expectativas do seu passageiro.

(Curiosamente - ou não - é a forma com que nós estruturamos os feedbacks 360-graus aqui na plataforma da Qulture.Rocks. Assim, o seu funcionário recebe um feedback que gera desenvolvimento imediato, e não uma avaliação que gera mais ansiedade do que qualquer outra coisa.)

Incentivos, recompensas e punições

Além disso, o sistema parte de certa forma de algumas premissas tácitas: em primeiro lugar, a de que ao suspender ou expulsar os piores motoristas, ela estará gerando um incentivo enorme para que os outros motoristas “andem na linha”. [2] Essa é uma premissa baseada nas teorias de incentivos (carrots and sticks) da psicologia comportamental, que, alguns defendem, reduzem os seres humanos a criaturas mais simplistas como camundongos de laboratório. (Não quero aqui duvidar da força dos incentivos - pelo contrário - mas sim falar sobre o perigo dos incentivos mal utilizados ou retirados do sistema.)

Empresas agem de maneira muito parecida quando instituem bônus por performance: elas partem do pressuposto que premiar os melhores funcionários com dinheiro leva, de maneira agregada, a uma melhor performance do todo no futuro, pois todos querem ser os melhores funcionários e ganhar mais dinheiro, e para isso trabalham mais/melhor.

A ciência prova que essa expectativa é problemática. Daniel Pink, em seu livro Drive, e Dan Ariely, em seu livro Payoff, dão dezenas de exemplos práticos de experimentos que provam o quão delicada é essa premissa. Entendo que minha experiência com o Uber em Nova York nos leva a conclusões parecidas: claramente a diminuição de punições e incentivos (que possivelmente existiam mas foram flexibilizados ou retirados em nome de outras prioridades) levou os motoristas da cidade Americana a retroagirem em seu nível de serviço.

É o propósito, estúpido [3]

Estamos discutindo aqui se o sistema de gestão de performance dos motoristas de fato melhora a performance dos próprios motoristas do Uber, e chegamos à conclusão que ele não é nada otimizado para isso, e podia ser muito melhor com alguns pequenos ajustes. Mas estamos deixando de discutir o que talvez seja a fundação desse problema: será que os motoristas do Uber querem evoluir no seu trabalho?

Apesar de não dizer isso claramente, é senso comum que a missão do Uber como organização é “prover transportes de maneira tão confiável quanto água corrente na sua torneira” (to make transportation as reliable as running water). Para chegar lá, a empresa está apostando em carros que dirijam sozinhos, como os que o Google está testando há anos no Vale do Silício.

A estratégia incluiu inclusive a aquisição da startup Otto (fundada por um ex-engenheiro da área no Google) por aproximadamente U$ 680 milhões. Ou seja, a estratégia para chegar a essa missão é, invariavelmente, tirar o motorista da equação, como prova uma fala do CEO da empresa, Travis Kalanick, na conferência Code:

"The reason Uber could be expensive is because you're not just paying for the car - you're paying for the other dude in the car...When there's no other dude in the car, the cost of taking an Uber anywhere becomes cheaper than owning a vehicle. So the magic there is, you basically bring the cost below the cost of ownership for everybody, and then car ownership goes away."

Me parece difícil que um motorista do Uber se sinta conectado à missão da empresa quando a própria empresa através da sua estratégia e também através de declarações do seu CEO tira o motorista da sua equação de médio e longo prazos.

Como vimos, no entanto, fica cada vez mais provado pela ciência comportamental que o propósito é uma peça chave na motivação das pessoas de darem o seu melhor no que elas fazem (as leituras de Drive e Payoff são cruciais para qualquer líder, CEO e gestor de RH). Sem um propósito inspirador para os motivar (e com recompensas e punições que podem ser retiradas do “sistema” pela empresa), os motoristas do Uber ficam à deriva, usando o marketplace como uma forma temporária de complemento de renda, e não como uma ocupação que os preencha como seres humanos.

Se as recompensas e punições já não fazem mais o mesmo efeito e a motivação pelo propósito nunca existiu, como vai a qualidade do serviço prestados pelo motorista (o que aqui estamos nos referindo como performance) se manter alta, quanto mais melhorar?

Conclusões

Vimos aqui que é possível traçar importantes paralelos entre a forma que o Uber gerencia a performance dos seus motoristas e a forma com que empresas e seus RHs gerenciam a performance dos seus funcionários. Vimos também que em ambos os casos há um foco enorme na mensuração de performance, e uma falta de foco igualmente grande no desenvolvimento da performance - no que faz a performance melhorar. Por fim, vimos que de nada adianta ter um excelente sistema de gestão de performance se não houver um propósito maior que dê senso de pertencimento e motivação aos seus participantes, para que eles queiram melhorar sua performance.

[1] Contraintuitiva pois o lugar-comum é acreditar que o Uber traz um serviço humano de maior qualidade pois seus motoristas são sujeitos a um rigoroso processo de avaliação de performance pelos clientes, que gera inclusive suspensões e expulsões do marketplace.

[2] Sinto que é esse o estágio onde o serviço do Uber está hoje no Brasil: os motoristas frequentemente comentam que não podem ter avaliações ruins, e que avaliações ruins produzem “ganchos” que afetam diretamente seus bolsos. Assim, recebo muitas vezes felicitações quando entro no carro, ofertas de água e balas, perguntas sobre o som e a temperatura, e assim por diante. Sinto também que claramente esse já não é mais o estágio em que está o serviço da empresa em Nova York. Lá, os motoristas já não parecem se preocupar mais com a qualidade do serviço como aqui. 

[3] Minha inspiração para esse título é uma expressão de James Carville, gestor da campanha vencedora de Bill Clinton à presidência dos EUA em 1992, que dizia “the economy, stupid” ao explicar para seus interlocutores que o importante, mesmo, na decisão da eleição seria a performance da economia, e que os outros assuntos todos (por exemplo as propostas de governo) eram secundários.

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